Inatividade Magistral

Inatividade Magistral por Charlotte Mason

Educação na Escola, Capítulo 3

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Aumento do Senso de Responsabilidade – Seria uma tarefa interessante para um especialista literário traçar os estágios do pensamento ético marcados pelos usos, na memória popular, da palavra responsabilidade. As pessoas, e até mesmo as crianças, eram altamente responsáveis nas décadas de cinquenta e sessenta, mas isso ocorria pelo seu próprio caráter, conduta e comportamento. Não parece que nos responsabilizamos da mesma maneira por essas questões hoje em dia. Temos a tendência de nos aceitar como inevitáveis, de fazer concessões gentis para nossas pequenas manias e pecadilhos, e talvez nos esteja faltando aquele saudável senso de humor, “o presente” que deveria nos dar, de

“Nos vermos como os outros nos veem.”

Um Sinal de Progresso Moral – Se pegamos mais leve com nós mesmos, no entanto, levamos outras pessoas mais a sério. O senso de responsabilidade ainda repousa sobre nós com um “fardo pesado”; apenas o transferimos para outros ombros. Os mais sérios de nós se desgastam com a sensação de dever para com aqueles ao nosso redor, tanto próximos quanto distantes. Os homens carregam esse peso mais facilmente do que as mulheres, porque, para a maioria deles, cada dia traz consigo o trabalho que deve ser feito, e eles têm menos tempo do que as mulheres para pensar ansiosamente sobre suas relações e deveres para com os outros. A propósito, é um sinal dos tempos que os tradutores da Versão Revisada nos dão – “não andeis ansiosos pela vossa vida”, em vez da tradução mais antiga. Mas, se as mulheres sentem o desgaste da responsabilidade pelos outros de forma mais constante, basta que surja um acontecimento urgente como a condição do Leste de Londres, a Autonomia da Irlanda, os massacres na Armênia para que os homens a sintam de maneira mais intensa e apaixonada. Esse senso aguçado não é uma doença de nossa época, mas um sinal dos tempos.

Para aqueles de nós que acreditam que todos estamos na escola da vida e temos nossas lições definidas conforme estamos aptos a recebê-las, esse senso geral de responsabilidade para com os outros é um sinal encorajador de que estamos sendo ensinados por Deus, e, no geral, estamos progredindo.

Responsabilidade Parental – Se todos nós nos sentimos responsáveis pelos aflitos, os que sofrem, os doentes, os frágeis de corpo ou mente, os deficientes, os ignorantes e — quem dera todos sentíssemos mais esse fardo em particular — pelos perdidos, há um tipo de responsabilidade que é sentida por pessoas reflexivas com uma acuidade quase excessiva. A responsabilidade parental é, sem dúvida, a nota educacional do dia. As pessoas sentem que podem criar seus filhos para serem algo mais do que elas mesmas, que devem fazer isso e que precisam fazê-lo; e é a esse agudo senso de dever parental mais elevado que a União de Pais deve sua atividade bem-sucedida.

Ansiedade, o Tom de uma Fase de Transição – Todo novo poder, seja ele mecânico ou espiritual, requer ajuste antes de ser utilizado em sua totalidade. No mundo científico, sempre há uma longa pausa entre o primeiro surgimento de uma grande descoberta — como os raios Röntgen, por exemplo — e o momento em que ela é aplicada aos assuntos da vida cotidiana com pleno efeito e sem o deslocamento de outros poderes cujas funções são igualmente importantes e necessárias. Devemos olhar com suspeita qualquer tentativa de fazer com que os raios Röntgen substituam o estetoscópio, o termômetro e todos os outros aparelhos clínicos. O mesmo acontece na esfera moral. Nosso senso mais aguçado de responsabilidade surge de um novo desenvolvimento do sentimento altruísta — temos maior capacidade de amar e um alcance mais amplo para nosso amor; estamos mais permeados pelo Espírito de Cristo, mesmo quando não reconhecemos a fonte de nossa vida mais plena. Mas perceber que há muito o que devemos fazer e não saber exatamente o que é, nem como fazer, não acrescenta prazer à vida ou facilidade em viver. Ficamos preocupados, inquietos, ansiosos; e, na fase de transição entre o desenvolvimento desse novo poder e o ajuste que vem com o tempo e a experiência, a vida mais plena, que certamente é nossa, ainda não nos torna mais felizes ou mais úteis.

Um Hábito Agitado e Inquieto – É com o objetivo de promover esse ajuste de poder que desejo apresentar aos pais e professores o tema da “inatividade magistral”. Devemos fazer tanto por nossos filhos e somos capazes de fazer tanto por eles, que começamos a pensar que tudo depende de nós e que nunca devemos interromper por um momento sequer nossa ação consciente sobre as mentes e corações jovens ao nosso redor. Nossos esforços se tornam agitados e inquietos. Estamos muito presentes com nossos filhos, “de manhã até a noite”. Tentamos dominá-los demais, mesmo quando falhamos em governar, e não conseguimos perceber que deixar sabiamente e propositalmente de intervir é a melhor parte da educação. Mas essa forma de erro surge de um defeito de nossas qualidades. Podemos ter bom ânimo. Temos as qualidades, apenas é necessário o ajuste; para isso devemos dedicar nosso tempo e atenção.

“Inatividade Magistral” – Uma bênção em nossa constituição mental é que, uma vez que tenhamos uma ideia, ela se desenvolverá, em pensamento e ação, sem muito esforço posterior de nossa parte; e, se admitirmos a ideia da “inatividade magistral” como um fator na educação, nos pegaremos modelando nosso tratar com as crianças a partir desse ponto de vista, sem muito esforço consciente. Mas devemos compreender claramente o que queremos dizer com inatividade magistral. A feliz expressão de Carlyle não tem nada em comum com a atitude de negligência que surge do pensamento “qual é a utilidade?” e ainda mais distante está da pura indolência mental que deixa as coisas seguirem seu curso em vez de se dar ao trabalho de conduzi-las a um resultado. Ela indica uma postura moral saudável e refinada que vale a pena analisarmos. Talvez a ideia seja quase a que Wordsworth transmite com sua expressão ainda mais feliz, “passividade sábia”. Ela indica o poder de agir, o desejo de agir e a percepção e autocontrole que proíbem a ação. Mas há, de nosso ponto de vista, pelo menos, uma ideia adicional transmitida na “inatividade magistral”. A maestria não é apenas sobre nós mesmos; há também um sentido de autoridade, do qual nossas crianças devem estar tão cientes quando está inativa quanto quando estão cumprindo nossas ordens. O senso de autoridade é a condição indispensável do relacionamento parental, e sem ela não sei se nossas atividades ou nossa inatividade produzirão grandes resultados. Este elemento de força é a espinha dorsal de nossa posição. “Poderíamos, se quiséssemos”, e as crianças sabem disso. Elas são livres debaixo de autoridade, o que é liberdade; ser livre sem autoridade é licenciosidade.

O Elemento do Bom Humor – O próximo elemento na atitude de inatividade magistral é o bom humor — franco, cordial, natural, bom humor. Isso é algo bastante diferente de uma complacência excessiva e de uma concessão geral a todos os caprichos das crianças. O primeiro é o resultado da força, o segundo da fraqueza, e as crianças são muito rápidas em perceber a diferença. “Ah, mãe, podemos ir colher amoras hoje à tarde, ao invés de fazer a lição?” O “sim” magistral e o “sim” abjeto tem tons bastante diferentes. O primeiro torna a folga duplamente prazerosa; o segundo produz um desejo inquieto de conseguir alguma outra vitória fácil.

Autoconfiança – O próximo elemento é a confiança. Os pais devem confiar mais em si mesmos. Nem tudo é realizado por um esforço inquieto. O mero fato bendito da relação parental e da autoridade que a acompanha, por direito e por natureza, age sobre as crianças como a luz do sol e a chuva sobre uma semente em solo fértil. Mas o pai ou mãe inquieto, ansioso, que explica demais, que comanda demais, que dá desculpa demais, que restringe demais, que interfere demais, até mesmo o pai ou mãe que está com as crianças demais, acaba com a dignidade e simplicidade dessa relação que, como todas as melhores e mais delicadas coisas na vida, sofrem ao serem afirmadas ou defendidas.

O jeito fácil e simples dos Pais – Os pais, às vezes, são mais felizes do que as mães ao assumir aquele jeito simples e fácil no tratar dos seus filhos, que pertence por direito à sua relação, mas isso acontece apenas porque o pai está ocupado com muitas coisas, enquanto a mãe tende a estar muito envolvida com seus filhos. É um pouco humilhante para boa parte de nós vermos uma mãe descuidada, até mesmo egoísta, cujos filhos são seus servos natos e correm para fazer suas vontades com alegria. A lição não é que todas as mães devem ser descuidadas e egoístas, mas que elas devem permitir que seus filhos sejam deixados em paz em boa medida e não devem oprimir os jovens com suas próprias preocupações ansiosas. Aquela pequena pessoa de dez anos que deseja saber se suas realizações estão na média para sua idade, ou aquele que discute seus maus hábitos com você e a melhor maneira de corrigi-los, é desagradável, porque percebemos instintivamente que a criança está ocupada com preocupações que pertencem apenas aos pais. O fardo do ensino e disciplina dos filhos deve ser suportado apenas pelos pais. Mas que o suportem com graça e postura ereta, como a camponesa espanhola que carrega seu jarro de água.

Confiança nas Crianças – Não apenas a confiança em si mesmos, mas também a confiança nos seus filhos, é um elemento da inatividade magistral que me atrevo a propor aos pais como uma “porcelana inglesa” para que “vivam à altura dela”. Acredite na relação de pai e filho e confie que as crianças acreditarão nela e cumprirão a sua parte. Elas farão isso se não estiverem preocupadas demais. 

A Onisciência dos Pais e Professores – Pais e professores devem, é claro, ser oniscientes; seus filhos esperam isso deles, e uma mãe ou pai que pode ser enganado é uma pessoa fácil de se lidar mesmo na mente da melhor criança. Pois as crianças estão sempre jogando um jogo – meio de sorte, meio de habilidade; elas estão sempre testando até onde podem ir, quanto da gestão de suas próprias vidas podem assumir, e quanto devem deixar nas mãos de poderes mais fortes. Portanto, a mãe que não está a par das crianças está à mercê delas e não deve esperar piedade. Mas ela deve ver sem vigiar, saber sem dizer, estar sempre alerta, mas nunca de forma óbvia ou agitada. Essa atitude de manter os olhos abertos deve ser como a da esfinge em seu repouso. As crianças devem saber que estão recebendo uma certa medida de autonomia, seja para cumprir seu próprio dever ou buscar seu próprio prazer. O poder que as contêm deve estar presente, mas passivo, de modo que a criança não se sinta encurralada. Aquele livre-arbítrio do homem, que por eras tem exercitado almas fiéis que prefeririam ser compelidas a toda retidão e obediência, é, afinal, um modelo para os pais. A criança que é boa porque deve ser, perde mais em capacidade de iniciativa do que ganha em comportamento adequado. Cada vez que uma criança sente que escolhe obedecer por vontade própria, sua capacidade de iniciativa é fortalecida. O freio de contenção não deve ser usado. Quando ocorre a uma criança refletir sobre seu comportamento, ela deve ter aquele senso de liberdade que faz seu bom comportamento parecer-lhe uma questão de sua própria preferência e escolha.

“Destino” e “Livre-arbítrio” – Esta é a liberdade que uma criança desfruta quando tem a confiança de seus pais quanto a suas idas e vindas e atividades infantis, e que está sempre ciente da autoridade deles. Ela é criada na escola apropriada para um ser cuja vida é condicionada por “destino” e “livre-arbítrio”. Ela tem liberdade, ou seja, há um senso de dever por trás dela para aliviá-la daquela inquietação que vem com o esforço constante de decisão. Ela é livre para fazer o que deve, mas sabe muito bem em seu íntimo que não é livre para fazer o que não deve. A criança que, pelo contrário, cresce sem um forte senso de autoridade por trás de todas as suas ações, mas que recebe muitas exortações para ser boa e obediente e o que mais for, está ciente de que pode escolher entre o bem ou o mal, pode obedecer ou não obedecer, pode dizer a verdade ou mentir; e, mesmo quando escolhe corretamente, faz isso ao custo de um grande desgaste nervoso. Seus pais removeram dela o suporte da autoridade deles na difícil escolha de fazer o certo, e ela é deixada sozinha para fazer aquele que é o mais difícil de todos os esforços, o esforço de decisão. A distinção entre ser livre para escolher o certo por opção própria, e não ser livre para fazer o errado, é muito sutil para ser compreendida, muito ilusória para ser prática? Pode ser que sim, mas é precisamente a distinção que percebemos em nossas próprias vidas, na medida em que nos mantemos conscientemente debaixo da governança divina. Somos livres para seguir os caminhos da vida correta e temos o feliz senso de liberdade de escolha, mas os caminhos dos transgressores são árduos. Estamos cientes de uma mão que nos restringe no presente e de uma retribuição certa e segura no futuro. Este equilíbrio delicado é o que se deve almejar para a criança. Ela deve ser tratada com total confiança, e deve sentir que fazer o certo é uma escolha livre que seus pais confiam que ela fará; mas também deve estar muito ciente da força dissuasora no plano de fundo, vigilante para impedi-la quando ela tentar fazer o errado.

As Partes Componentes da Inatividade Magistral – Vimos que autoridade, bom humor, confiança — tanto autoconfiança quanto confiança nas crianças — estão todas contidas na inatividade magistral, mas essas não são todas as partes desse todo. Outro fator é ter uma mente sã em um corpo são. Se o corpo são for inatingível, ainda assim, obtenha a mente sã. Que a mãe nervosa, ansiosa e preocupada não pense que essa relação fácil e feliz com seus filhos é para ela. Ela pode ser a melhor mãe do mundo, mas a coisa que seus filhos receberão dela nesses momentos inquietos é um toque de seu nervosismo —a mais contagiosa das queixas. Ela os encontrará irritadiços, rebeldes, incontroláveis e demorará a perceber que é sua culpa; não a culpa de sua ação, mas de seu estado.

A Serenidade de uma Madonna – Não é à toa que os antigos pintores, por mais diversas que fossem suas ideias em outras questões, todos fixaram-se em uma qualidade como própria da Mãe modelo. A Madonna, não importa de qual tela olhe para você, está sempre serena. Esta é uma grande verdade, e seria bom pendurarmos em nossas paredes as Madonnas de todos os antigos Mestres, se a lição, ensinada através do seu olhar, chegasse ao coração com uma influência calmante. Seria essa uma afirmação difícil para as mães nesses dias ansiosos e conturbados? Pode ser difícil, mas não é insensível. Se as mães pudessem aprender a fazer por si mesmas o que fazem por seus filhos quando estão exaustos, teríamos lares mais felizes. Que a mãe saia para brincar! Se ela tivesse coragem de deixar tudo de lado quando a vida se torna muito tensa, e simplesmente tirasse um dia, ou meio dia, nos campos, ou com um livro favorito, ou em uma galeria de arte olhando demoradamente e muito bem para apenas duas ou três pinturas, ou fosse para a cama, sem as crianças, a vida seguiria muito mais felizmente para ambos, crianças e pais. A mãe seria capaz de manter-se em “passividade sábia,” e não atormentaria seus filhos com interferências contínuas, seja com as mãos ou com o olhar — ela os deixaria viver.

Lazer – Outro elemento é o lazer. Às vezes, os eventos nos apressam, e às vezes, gostamos da pequena emoção de uma correria, não é verdade? As crianças também gostam, a princípio. O aniversário do pai está chegando, e Nellie deve recitar um poema para ele; a pequena festa foi pensada com apenas uma semana de antecedência, e Nellie se pega nos momentos mais estranhos tentando decorar algumas linhas da recitação. No início, ela fica contente e se sente importante, e vai alegremente para a tarefa; mas, pouco a pouco, isso a irrita; ela fica irritada e travessa, é repreendida por falta de amor pelo pai, derrama lágrimas sobre seus versos e, embora a pequena apresentação possa ser concluída muito bem, Nellie sofreu física e moralmente ao fazer o que, se tivesse sido pensado um mês antes, teria sido uma tarefa totalmente saudável e agradável. Ainda pior para as crianças é quando a mãe ou a professora tem um dia “ocupado”. Amigos estão vindo, ou o guarda-roupa da família para o verão precisa ser arrumado, ou gavetas e armários devem ser esvaziados, ou um exame está próximo. De qualquer forma, é um daqueles dias agitados e ocupados que nós, mulheres, gostamos. Fazemos mais do que podemos, nossos nervos ficam “à flor da pele”, tanto pelo cansaço quanto pela pequena excitação, e todos na casa ou na escola ficam desconfortáveis. Mais uma vez, as crianças se aproveitam, assim dizemos; o fato real é que elas aderem o humor da mãe e ficam irritadiças e cansativas. Tempestades de nervos no berçário são o provável resultado da pequena ebulição de energia nervosa da mãe. Lazer para si mesmas e uma sensação de prazer nas pessoas ao seu redor são tão necessários para o bem-estar das crianças quanto para a atitude parental forte e benigna de que estou falando.

– Outros ingredientes contribuem para a composição deliciosa que chamamos de “inatividade magistral”, mas o espaço me permite falar de apenas mais um. Aquela forma mais elevada de confiança, conhecida por nós como fé, é necessária para o pleno repouso da mente e do modo de ser. Quando reconhecemos que Deus não entrega a criação dos filhos completamente aos seus pais, mas que Ele próprio trabalha, de maneiras que devemos cuidar para não impedir, no treinamento de cada criança, então aprenderemos a passividade, humilde e sábia. Daremos às crianças espaço para se desenvolverem de acordo com suas próprias características, em todos os modos corretos, e saberemos como intervir eficazmente para prevenir aqueles erros que, também, são próprios de suas características individuais. 

Vamos considerar a seguir algumas das várias fases da vida das crianças nas quais pais e professores fariam bem em preservar uma atitude de “inatividade magistral”.